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A Síndrome de vira-lata e a mulher Brasileira: o peso de desejar o que não somos

  • Foto do escritor: Karen Faria
    Karen Faria
  • 19 de jul.
  • 3 min de leitura
Estética Brasileira
Estética Brasileira

A chamada síndrome de vira-lata, termo cunhado por Nelson Rodrigues após a derrota do Brasil na Copa de 1950, virou um diagnóstico cultural recorrente (mas ela é muito mais antiga e mais profunda do que o futebol). Carregamos essa síndrome no modo como falamos, nos vestimos, como sonhamos estudar fora, como sentimos vergonha do nosso sotaque,  da nossa música, do nosso corpo. É como se a autodepreciação fosse a moeda de troca para existir num mundo moldado pela estética e pelos valores do colonizador. O Brasil sempre quis se parecer com a Europa. Basta lembrar que a elite carioca, no século XIX, copiava os modos da elite portuguesa, que, por sua vez, copiava os franceses (inclusive nos talheres, nas roupas, no francês forçado nos saraus). Enquanto isso, toda referência indígena era silenciada. Tudo que lembrava África foi empurrado para as margens, criminalizado, embranquecido. E esse desejo de parecer com o outro, com o europeu, virou uma ferida aberta que a gente ainda tenta esconder com base, filtro e uma graduação na Europa. 


Mas, entre as mulheres, essa síndrome ganha contornos ainda mais violentos. Nos ensinaram que o corpo bonito é o magro, branco, europeu. Que o cabelo ideal é o liso, que a pele “boa” é a clara. Nos moldamos literalmente para caber em um ideal que não nasceu aqui. E o mais cruel é que esse ideal sempre foi distante da mulher indígena, da mulher preta, da mulher nordestina. Nós fomos afastadas da nossa própria ancestralidade para caber no imaginário europeu. E quem não cabe nele é taxada de vulgar, “barraqueira”, “exótica demais” ou “intensa demais”. O racismo, o classismo e o machismo se entrelaçam nesse processo. Repare como muitas vezes a gente rejeita, com superioridade, aquilo que é popular, periférico, negro. O rap e o funk, por exemplo, são gêneros musicais que falam de resistência e realidade, mas são tratados como barulho, como degradação. E isso não é à toa: o inconsciente coletivo brasileiro ainda quer distância do que nos lembra o Brasil real. Aquilo que é branco, europeu, limpo, educado e “discreto” ainda é o que vale mais. A síndrome de vira-lata é um processo de identificação com o opressor. O brasileiro e, principalmente, a mulher brasileira foi ensinada a se odiar, para se moldar em um padrão gringo. Há uma divisão no nosso eu: queremos ser o que não somos e rejeitamos o que nos constitui. Isso gera culpa, vergonha e uma busca incessante por validação externa. É uma ferida narcísica que transforma o desejo de pertencimento numa prisão.


E o que isso tem a ver com a nossa vida hoje? Com a forma como a gente se arruma, como se desculpa pelo sotaque, como tenta parecer “menos emocionada” ou “menos espalhafatosa”? Tudo.  A síndrome de vira-lata está nas entrelinhas dos nossos comportamentos mais sutis, principalmente quando somos mulheres tentando sobreviver num país que nos ensinou a ser menos. É urgente rever essa lógica. Reaproximar-se das nossas raízes não é só um ato político, é uma reconfiguração interna. Recuperar o que nos foi arrancado: o orgulho de ser latino-americana, a musicalidade do nosso corpo, a ancestralidade que carregamos na pele e no nome. Não se trata de rejeitar o que vem de fora, mas de romper com a lógica que nos ensinou a odiar o que nasceu aqui. Porque talvez o maior gesto de liberdade da mulher brasileira não seja gritar, mas se ouvir. Reconhecer no espelho a força indígena, negra, latina que molda seus traços: A intensidade que tentaram suavizar, o ritmo que tentaram silenciar, o sotaque que mandaram disfarçar. Lembrem-se: somos filhas da mistura, da luta e da beleza que esse país, até hoje tenta esquecer e se moldar aos gringos.


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