O Amadurecimento precoce como mecanismo de sobrevivência
- Karen Faria
- 3 de jul.
- 2 min de leitura

O filme Uptown Girls (2003) apresenta Ray, uma menina de oito anos com maneiras de adulto, vocabulário afiado e uma rigidez emocional que disfarça um medo profundo: o abandono.
Sua personalidade controladora e irritada, é uma armadura psíquica, ou seja, é um mecanismo de defesa contra a dor de pais emocionalmente (ou fisicamente) ausentes.
Muitas mulheres reconhecem essa dinâmica porque a viveram. Quando uma criança, especialmente uma menina é deixada à própria sorte em uma casa vazia, ela não tem o luxo da dependência. Aprende a não precisar… Os livros, a televisão, os rituais meticulosos (como os de Ray com sua agenda e higiene obsessiva) não são excentricidades, mas estratégias de sobrevivência emocional. A psicanálise nos lembra que a criança que se torna adulta antes da hora não faz isso por escolha, mas por necessidade inconsciente de se proteger. Winnicott falaria de um falso self (uma persona construída para agradar, para não ser um incômodo, para ocupar menos espaço). Ray, como muitas de nós, aprendeu que demonstrar vulnerabilidade era perigoso. Seus pais não estavam lá para confortá-la, então ela apagou a própria infância e vestiu-se de mini adulta.
Mas o que acontece quando essa menina cresce? Muitas mulheres carregam, mesmo na vida adulta, uma desconfiança crônica do afeto. Se acostumaram a acreditar que amor é algo que se conquista com perfeição, com utilidade, com silêncio. A personagem de Molly, caótica e emocionalmente exposta, é um espelho invertido dessa dinâmica: enquanto Ray petrificou seus sentimentos, Molly os derrama e ambas são respostas diferentes ao mesmo medo: ser deixada.
O filme sugere uma cura possível quando Ray finalmente chora. Aquele momento é revolucionário: é quando ela permite a si mesma a fragilidade que lhe foi negada. Para muitas mulheres que cresceram assim, o processo terapêutico (ou artístico, ou relacional) envolve justamente isso: reencontrar a criança que foi obrigada a se esconder. Não é sobre "deixar de ser forte" é sobre entender que a força verdadeira não precisa vir do autocontrole absoluto. Pode vir, também, da capacidade de dizer: "Eu fui abandonada, e isso doeu. Eu me fiz adulta cedo demais, e hoje posso chorar por isso”.
Ray, no final do filme, ainda será uma criança peculiar. Mas já não está mais sozinha. E talvez essa seja a maior reparação possível: permitir que alguém a veja e que ela mesma se veja sem a armadura. Esse padrão é frequentemente romantizado ("ela sempre foi madura para a idade"), mas raramente questionado.
Quantas de nós ouvimos isso e internalizamos que era um elogio quando, no fundo, era um sintoma?
*Esse texto é feito pela minha criança interior que vivia sozinha, tinha tardes longas demais e aprendeu a decorar o barulho da chave na porta. Espero que seja um abraço, para quem viveu o mesmo.
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